SÃO MALAQUIAS E O "SHIFT" PAPAL

 
 
Acreditar em profecias, por si só, já é um ato de fé - não existe em princípio nenhuma comprovação científica sobre a possibilidade de se prever o futuro. Profetas ficam famosos quando prevêem desgraças - guerras, mortes, catástrofes - especialmente quando acertam ou - sendo um pouco mais rigoroso - quando são interpretados como tendo acertado. Pois afinal nenhum profeta prevê de forma clara e com nome, dia e hora marcados, são sempre profecias vagas que requerem algum tipo de interpretação.

As profecias sobre o fim do mundo, então, são das mais interessantes. Não existe catástrofe maior do que o fim do mundo - embora, para alguns, esse fim do mundo seja visto como um fim do mundo benigno, uma redenção, preparação para a segunda vinda de Cristo ou para um "upgrade" espiritual da Terra em relação aos demais planetas. Mas, mesmo com essa conotação positiva, fim de mundo é fim de mundo, não há como negar. Uma experiência terrível, guerras, mortes, sangue, lágrimas.

Dentro desse contexto religioso e fim-de-mundista, uma das profecias mais interessantes que conheço é a atribuída a São Malaquias. Ele não teria previsto o fim do mundo - previu apenas a lista de papas. Para cada Papa, desde Celestino II no ano de 1143 até Pedro II, o último papa, São Malaquias escreveu - ou teria escrito - um título em latim seguido de uma pequena frase para definir seu pontificado. É uma profecia interessante, pois envolve a própria religião com o aspecto de fé intrínseco às profecias, e ainda prevê o fim do mundo de uma forma indireta - com o fim da lista de papas.

Conheci a profecia de São Malaquias no início dos anos 70, quando o Papa Paulo VI, cada vez mais velho e doente, passou a ser figura obrigatória nas profecias de final de ano. "O Papa terá sérios problemas de saúde em 1972, podendo inclusive vir a falecer", já diziam alguns profetas de fim de ano. "O Papa terá sérios problemas de saúde em 1973, podendo inclusive vir a falecer", insistiram no ano seguinte. "O Papa terá sérios problemas de saúde em 1974, podendo inclusive vir a falecer", e assim foi até finalmente acertarem a morte do Papa em 1978.

A profecia de São Malaquias era muito clara, pelo menos para as interpretações da época. "Pastor et Nauta" era o título que definia Paulo VI. Pastor e navegante. Uma unanimidade - Paulo VI era, na época, o papa que mais tinha viajado em todos os tempos, levando a fé a vários lugares do mundo. Um verdadeiro "pastor et nauta" como previra São Malaquias. Antes dele, "Pastor Angelicus", o título do Papa João XXIII, era outra unanimidade. Um papa de muita paz, devoto da Virgem Maria. "Fides Intrepida" (Fé Intrépida) definia Pio XII, que fora papa durante toda a Segunda Guerra Mundial e início dos anos 50. "Religio Depopulata" (Religião Despovoada) definia muito bem Pio XI, papa de 1922 a 1939, período de ascensão do comunismo, nazismo e fascismo, outro acerto de São Malaquias.

Os papas futuros seriam poucos. "Flos Florum" seria o sucessor de Paulo VI. Todos apostavam em um francês, pois o cardeal francês Jean Villot era figura importante no Vaticano na época, e a frase completa de São Malaquias falava em pátria e lírio (símbolo da monarquia francesa) - "eis a flor das flores, eis o lírio coroando as virtudes santíssimas da pátria, as quais foram preditas no Senhor". Depois do francês viria o "De Medietate Lunae" (Da Metade da Lua), que todos apontavam como sendo o papa na época na invasão muçulmana na Europa. Em seguida viriam o "De Laboris Solis", "De Gloria Olivae" e finalmente o "Petrus Romanus", apontado como o último papa. E aí, fim do mundo.

Na sucessão de Paulo VI, a surpresa - nada de francês. Veio o simpático Papa João Paulo I, que não tinha nada a ver com lírio ou França para ser o "Flos Florum", e morreu em 33 dias. E as especulações sobre um possível papa de origem síria ou qualquer coisa do gênero para ser o "De Medietate Lunae" foram desfeitas com a eleição do polonês Karol Wojtyla para Papa João Paulo II.

Tempo: alguns anos. Passou toda a década de 80, toda a década de 90, novamente pesquiso alguma coisa sobre profecias na virada de 2000. E vejo que São Malaquias continua firme e forte.

Mas agora houve uma mudança. Um deslocamento. Um "shift" papal, para ser um pouco mais pedante.

O sucessor de Paulo VI não seria o "Flos Florum", mas sim o "De Medietate Lunae". João Paulo I é que teria sido o "De Medietate Lunae" porque seu pontificado durou 33 dias - de uma meia-lua para a meia-lua seguinte. Nada a ver com muçulmanos e coisas assim.

João Paulo II foi definido como "De Laboris Solis", um Papa trabalhador, lembrando o sol dos campos poloneses e similares.

Paulo VI foi redefinido. Não é mais "Pastor et Nauta", mas passou a ser o "Flos Florum". Descobriram alguma ligação com o lírio, parece que tem um lírio no seu brasão ou alguma coisa parecida com lírio.

João XXIII deixou de ser "Pastor Angelicus" e virou "Pastor et Nauta". Apesar de quase não ter viajado. Mas como ele foi bispo de Veneza durante alguns anos, a definição se encaixa, afinal deve ter andado bastante de gôndola para poder ser "nauta". E "pastor", ninguém discute.

Pio XII virou "Pastor Angelicus". Serve, pois todo papa é pastor, e de algum modo tem devoção pela Virgem Maria. Pio XI virou "Fides Intrepida". E assim sucessivamente até encontrarem algum papa duvidoso no passado (houve casos de mandatos-tampão e papas não eleitos no passado), caraterizarem-no como merecedor de uma frase de São Malaquias para ser criado o "shift" papal e poderem acertar a interpretação da profecia.

Acho até que ficou coerente, "De Medietate Lunae" para o João Paulo I, e "De Laboris Solis" para João Paulo II - especialmente o João Paulo II do início do papado, rosadão, queimado de sol, alpinista, esquiador. Mas fico impressionado como se muda assim uma interpretação de profecia e fica tudo bem. As definições antigas, de Paulo VI, João XXIII, os três Pios, que eram consideradas coerentes, foram simplesmente mudadas para o papa anterior e pronto, arrumaram pontos de explicação e a profecia continuou valendo. Foram inclusive descobertos textos antigos mostrando que a interpretação correta tinha sido sempre esta, o "Pastor et Nauta" para Paulo VI é que fora um erro grosseiro.

Pensando bem, a profecia de São Malaquias vale para quaisquer papas. Se cidade onde morou, flor do brasão e acontecimentos gerais servem para caracterizar que a profecia se cumpriu, então com um pouco de pesquisa, praticamente qualquer papa deve atender a qualquer frase atribuída a São Malaquias.

Não sei quando essa profecia apareceu pela primeira vez. Mas, muito provavelmente, deve ser um texto conhecido no máximo há uns 200 a 400 anos. Não acredito que estejam há mil anos com o texto na mão acompanhando e ticando a profecia a cada papa que surge. Meu palpite - sou completamente cético, como todo bom Taurino - é que alguém escreveu essas profecias há uns 200 a 400 anos, e calculou mais ou menos para o último papa, o Pedro II, cair perto do ano 2000 - o ano que sempre foi tido como o do Fim dos Tempos. Mas como os papas mais recentes têm tido pontificados maiores e elevaram a média papal (apesar dos 33 dias de João Paulo I) - Pio XI ficou 17 anos, Pio XII 19 anos, Paulo VI 16 anos, João Paulo II completou 24 anos em 2001 - acabou errando o cálculo. Dessa forma, ainda temos além de João Paulo II como "De Laboris Solis", o papa "De Gloria Olivae" para finalmente entrar o "Petrus Romanus", o presumido último papa.

Quem viver mais dois papas, verá se o "Petrus Romanus" vem mesmo para fechar a lista, ou não.



Este texto foi publicado no site "Uma Coisa e Outra" (www.umacoisaeoutra.com.br) e na revista "Mistério" especial sobre o Apocalipse, em maio de 2003.
 

 


incluído em 21/09/2001
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